Indicado a quatro categorias no OSCAR, Corra! foi uma surpresa bem-vinda em 2017 e é o competidor do qual esse prêmio precisava.
Escolhido como “Melhor Filme” e “Melhor Roteiro Original” de 2017 pela Online Film Critics Society, o filme concorre no OSCAR 2018 pelas mesmas duas categorias e, além delas, “Melhor Ator” e “Melhor Direção”.
Jordan Peele já é familiarizado e reconhecido pelas suas produções de comédia, frequentemente com teor racial, de forma que a produção de um filme de terror foi uma surpresa, e mais ainda quando vimos o resultado; Corra! transcende a barreira do gênero e por isso gerou, além daquelas centrais, discussões acerca da sua interseção com a comédia.
O filme, lançado no Brasil em maio de 2017, se passa durante uma inocente visita de um casal aos pais da namorada. A sacada aqui é a relação entre uma mulher branca e um homem negro, o que ainda é visto como um tabu para muitos. Podemos lembrar do que foi feito em Ele Tem Os Seus Olhos1 (2016), num sentido parecido de relações entre etnias distintas gerando constrangimento social e uma ironia latente.
O grande diferencial é o roteiro de Peele, que apresenta um terror psicológico sutil, que ascende até além do desconforto, gerando uma sensação de pânico. Vamos da sutileza de uma pergunta feita por Chris (Daniel Kaluuya) – “Eles sabem que eu sou negro?” – à seriedade da relação policial com os afroamericanos em pouco tempo. Ademais, os elos da estrutura narrativa se encontram, formando ligações que dão complexidade à personagem principal e explicam suas ações.
Sua temática é poderosa; Corra! explora o não-lugar a que a população negra é levada na nossa sociedade, objetificando corpos e invisibilizando narrativas de forma condescendente. “Eles nos tratam como família”, Georgina (Betty Gabriel) diz a Chris, exibindo o troféu de bondade de que se vangloriam muitas famílias. A ironia é palpável e central na narrativa, flertando a todo momento com o cômico e com o exagero.
A direção é outro ponto forte do filme. Existe um contraste entre a naturalidade de Chris e a artificialidade dos empregados dos Armitage que é captado sem pressa; o enquadramento fechado permite que as expressões dos atores sejam profundamente exploradas, com destaque para a cena de Betty Gabriel explicando porque desconectou o celular de Chris, e planos mais abertos dão a sensação de solidão pela qual ele está passando. A produção é cheia de detalhes, elementos em cena que adicionam à atmosfera tensa e instigam o espectador, sejam eles físicos ou sonoros.
Jordan Peele explora a velocidade de cena e a imobilidade de câmera com o mesmo sucesso em aterrorizar, criando sequências memoráveis – quem não quis sair gritando pela própria vida enquanto Walter (Marcus Henderson) corria com toda a velocidade em direção à câmera? Ademais, Peele foi capaz de personificar o não-lugar, com um toque de surrealidade que rendeu momentos asfixiantes.
Jordan Peele e Betty Gabriel
Precisamos falar sobre Daniel Kaluuya. Ele é o cara legal que evita começar brigas, se mantém reservado e não sabe exatamente o que dizer; ele tem tiques, ele tem traumas; ele tem hobbies. Chris é uma pessoa palpável e relacionável, num ótimo esforço conjunto de roteiro, direção e atuação. Mas Kaluuya é uma infinidade de outras coisas, com uma capacidade de comunicação através de microexpressões e de atuação com os olhos que se encaixa perfeitamente com sua personagem contida e simpática. Na cena de sua primeira hipnose, seus olhos são fixos e desconfiados e, ainda assim, todo o resto de seu rosto entrega sua agonia, se avolumando até escorrer em lágrimas, portanto não foi por acaso que se tornou a capa de todas as matérias sobre o filme. O ator é uma revelação no cinema, apesar de ser conhecido por aparecer em um dos episódios da primeira temporada de Black Mirror. Sua performance nos deixa atônitos, em ambas as produções, e a indicação é um reconhecimento da habilidade e do tato com que trabalha.
A nomeação de Corra! nas categorias mais esperadas do OSCAR pode ser vista como uma tentativa da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas de renovar suas bases, como ressaltou John Bailey, o presidente da Academia; sabemos que isso vem principalmente à luz dos escândalos dos últimos anos, devido à falta de representatividade nas mais públicas premiações de cinema. O próprio OSCAR foi acusado de racismo na última edição e esse ano tivemos a crítica mordaz de Scarlett Johansson ao Globo de Ouro, por não ter nenhuma mulher concorrendo na categoria de direção.
Talvez exista uma abertura para trazer as boas produções – as ótimas produções – de e sobre gênero, etnia, religião e todos os demais para esse espaço, e talvez com mais barulho consigamos mais a cada ano. O importante é não parar.
Excelente a análise feita sobre o filme, sobretudo por não falar de um lugar comum, mergulhando na obra de tal maneira que dá vontade de rever o filme.
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