A narrativa de Atypical (2017) é forte e poderosa ao retratar o Transtorno do Espectro Autista, mais conhecido como autismo, mas falha miseravelmente na construção narrativa sobre a atuação profissional do psicólogo.
Atypical, que teve o seu lançamento em agosto de 2017, foi criada por Robia Rashid e narra a história de Sam (Keir Gilchrist), com a sua vontade de fazer coisas que garotos da sua idade costumam fazer, como, por exemplo, arrumar uma namorada. Rashid descreve em seu roteiro as dificuldades enfrentadas pela personagem de Keir e como a sua família reage aos comportamentos do autismo e às limitações que o garoto encontra ao longo da vida.
A roteirista criou um espaço de fala gigantesco e poderoso ao retratar o Transtorno do Espectro Autista como uma fidelidade aos comportamentos descritos no Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais – DSM V, ajudando a levar a discussão à respeito da importância de criar espaços sociais que possam incluir crianças e adolescentes com autismo dentro da sociedade.
Uma das maiores vontades de Sam é encontrar uma namorada e poder viver aquilo que nunca viveu antes; no entanto, a sua família, principalmente a sua mãe, Elsa (Jennifer Jason Leigh), acha que ele não conseguirá viver esta experiência. Isso deixa bastante claro um fenômeno bastante comum na nossa sociedade: não dar oportunidades para que o jovem autista possa viver uma vida como as das outras pessoas de sua idade. Dentro das limitações que o espectro autista traz, Sam tem a plena capacidade de fazer as ações que deseja.
Elsa, o tempo inteiro, repete e fica indignada com quem apoia o desejo de seu filho de namorar, provando ainda mais a dificuldade que grande parte dos pais tem de perceber que este distúrbio de desenvolvimento neurológico não retira as potencialidades que caracterizam um ser humano como ser humano. Sim, leva-se em consideração os aspectos sintomatológicos do autismo, mas nunca deve-se, em hipótese alguma, desconsiderar a dimensão social, pois, ao fazer isto, reduzimos o ser humano a uma única característica, que no caso de Sam seria o autismo.
Uma outra discussão importante que Atypical traz é como as mudanças para incluir não apenas o autismo, mas também outras crianças com necessidades especiais, são vistas com maus olhos por grande parte da sociedade. Grande parte deles reclamam que as escolas, ou qualquer outro espaço público, façam alterações em seu espaço físico com o intuito de acolher com dignidade estas pessoas. Em suas visões, não vale a pena mudar todo um protocolo, seja ele físico ou social, para atender as necessidades de um aluno. Essa questão aparece quando uma das alunas que estuda com Sam propõe um baile com silêncio e sem luzes fortes, pois, assim, o garoto poderia participar do mesmo junto com os outros adolescentes e uma das mulheres na reunião escolar se posiciona contra essa ideia. A discussão sobre a importância de adaptar o ambiente vem através de um discurso emocionado de Elsa, quando ela explana tudo que o filho não consegue fazer por conta desta falta de adaptação do local físico.
Ou seja, a fala da mãe de Sam deixa uma questão importante no ar: não é realizar mudanças para incluir um aluno, mas poder criar um espaço onde possa ser construída uma consciência crítica sobre a inclusão de alunos com autismo ou qualquer outra necessidade especial dentro do espaço escolar, dando a Sam a oportunidade de desenvolver as esferas cognitivas, afetivas e sociais. Se não houver isto, não estaremos agindo de acordo com os direitos humanos de respeito e dignidade a todos, como está descrito na Declaração dos Direitos Humanos. Ao tratar Sam com a dignidade e o respeito que convém a todos nós, ele conseguirá viver uma vida normal, mesmo com as limitações que o Transtorno do Espectro Autista pode trazer.
Se Atypical cria um espaço de fala importante e suscita discussões igualmente importantes sobre inclusão escolar, o mesmo não acontece com a construção narrativa sobre a atuação profissional da psicóloga Julia (Amy Okuda), a terapeuta de Sam que quebra os principais códigos de ética a respeito da atuação profissional do psicólogo, cometendo falhas gigantescas. Em um dos episódios, a personagem de Amy realiza uma psicoterapia dentro do estacionamento da loja onde Sam trabalha e, de acordo com as resoluções do Conselho Federal de Psicologia – CFP, as práticas clínicas são destinadas apenas ao espaço das clínicas e dos consultórios de psicologia – ou seja, estacionamento de carro não é local para realizar ações psicoterapêuticas. A exposição da vida particular, principalmente em vias públicas, é um ato antiético e que quebra o sigilo que deve ser respeitado em qualquer sessão com qualquer cliente. O ato correto de Julia seria cortar, com educação, o que Sam dizia e dizer que eles discutiriam sobre o assunto na próxima sessão, no consultório dela.
A segunda falha ética da terapeuta foi convidar Doug (Michael Rapaport), pai de Sam, para sentar-se junto com ela na mesa de um restaurante. Ainda segundo as resoluções do CFP sobre as principais funções e atuações do psicólogo, a relação de vínculo criada com cliente deve ser estritamente profissional, de forma alguma o vínculo afetivo deve ser formado. De acordo com estas resoluções, Julia deve mostrar-se empática com Sam, mas em nenhum momento ela poderia pensar que poderia ser amiga da sua família. Chamar Doug para comer com ela na mesa de um restaurante é quebrar o código de ética que diz respeito ao vínculo criado ser terapêutico e não afetivo, afinal ela é a psicóloga do Sam e não uma amiga.
A terceira falha ética veio no momento em que a mulher grita com o garoto por ele ter invadido a sua casa e deixado um chocolate com morango cair embaixo do sofá. O problema maior não foi ela ter repreendido e dito ao seu paciente que essa atitude estava errada, foi o ato de ter gritado com ele. Ao falar em tom mais alto com Sam, ela desconsiderou todas as atitudes profissionais que devem ser realizadas no processo de intervenção no espectro autista. Não se deve, de forma alguma, gritar e deixar um cliente sair correndo em estado de crise, ainda mais tratando-se de um indivíduo com comportamentos semelhantes ao autismo.
Atypical apresenta discussões de grande relevância ao abordar o Transtorno do Espectro Autista, mesmo com as falhas apresentadas sobre a atuação profissional de Okuda. A serie é gigante e muito eficaz em suas abordagens, ajudando a criar um espaço de consciência crítica que pode ajudar no processo de inclusão.