A série catalã convida a refletir sobre a sociedade atual através da perspectiva de uma aula de filosofia do ensino médio.

Criado e escrito por Héctor Lozano e dirigido por Eduard Cortés, a série apresenta a história de Merlí Bergeron (Francesc Orella), um professor de filosofia que é contratado no instituto Àngel Guimerà para dar aulas na turma do seu filho, Bruno (David Solans). Ao chegar, gera controvérsias e agitações com seus métodos pouco ortodoxos de ensino, ao mesmo tempo que incentiva seus alunos a pensarem livremente.
Merlí (2015-2018) lida com questões atuais nas escolas e entre os adolescentes, como bullying, sexualidade, exposição nas redes sociais, drogas e transtornos psicológicos. Capítulo após capítulo, a personagem de Orella ensina sobre filósofos famosos de uma forma extravagante, porém efetiva e didática.
A primeira temporada conta com treze episódios, e narra como a entrada do Merlí na escola impacta na vida de alunos, colegas e pais. Cada episódio mostra as ideias de um pensador ou filósofo, como Platão, Maquiavel, Sócrates ou Nietzsche; e a narrativa vai apresentando a história de vários alunos da turma, a quem Merlí batiza como peripatéticos. Em princípio, todos eles podem ser inseridos em algum estereótipo: o mulherengo, a gorda, o homossexual enrustido, a vadia, o nerd, etc. Mas, com o progredir da temporada, é possível ver uma versão aprofundada deles, que foge das definições preestabelecidas e dos clichês. Todos são imperfeitos e têm seu lado humano. Cometem erros mas também têm a capacidade de se arrepender e corrigi-los, assim como passar por uma desconstrução muito necessária de representatividade nas séries atuais. É muito fácil se identificar com eles.
[ALERTA SPOILERS]
O amor e os relacionamentos não ficam de fora, com os envolvimentos da personagem representado pelo Orella com professoras e mães dos seus alunos; e também com o descobrimento e a aceitação da homossexualidade do Bruno ao sentir atração pelo seu melhor amigo e aluno preferido do Merlí, Pol Rubio (Carlos Cuevas). Mas é também aqui onde aparece uma das principais críticas: a falta de representatividade feminina. As histórias das alunas estão muito menos desenvolvidas que as dos seus colegas homens. Ainda mais das professoras e mães. Muitas delas são limitadas a ser objeto de desejo das personagens masculinos e a cumprir com um rol exclusivamente familiar.
Várias vezes podem se perceber atitudes machistas de Merlí frente às mulheres, com a desculpa de que “ele é desse jeito”. Até poderia ser chamado de misógino quando insiste e as manipula para conseguir satisfazer seus desejos carnais. E ele critica constantemente as formas de criação dos alunos pelas mães, caindo no mansplaining em muitas situações.
Mesmo com as críticas acima, já nos primeiros capítulos a série tem momentos memoráveis, como a conversa entre Merlí e Joan Capdevila (Albert Baró), um aluno que sofre pela pressão e a severidade do seu pai. Na cena, o professor machuca uma nota de cinquenta euros, perguntando para Joan quanto ela vale após cada batida. “Pois você é como essa nota. Por mais que pisem em você, que o magoem, vale a mesma coisa. E acho que vale muito”. No mesmo episódio, o Bruno dança com sua melhor amiga, a Tània Illa (Elisabet Casanovas), demonstrando também a força que pode-se achar em cenas cativantes sem precisar de diálogos. Em geral, todos os atores tiraram uma nota alta, parecendo que cada personagem foi feita para ser representada exclusivamente por eles.
O lugar de “vilão” nessa primeira temporada é ocupado pelo Eugeni Bosch (Pere Ponce), chefe de estudos e professor de língua e literatura catalã, que mantém um jeito tradicional de ensino e busca que Merlí receba punições toda vez que este infringe as regras.
A trilha sonora é um dos pontos excepcionais da produção, composta principalmente por música clássica, incluindo peças de Bach e Chopin, entre outros. Também tem seu lugar outros gêneros como o pop e o indie rock, com artistas catalãs como Lluís Gavaldà e Pau Vallvé. Ela está disponível em Spotify e no Apple Music.
Um dos principais dramas da primeira temporada é a história do Ivan Blasco (Pau Poch), um aluno que saiu da escola por um princípio de agorafobia e recebe aulas do Merlí na própria casa. Apesar de ter diálogos notáveis entre aluno e professor, a posterior resolução do transtorno é tratada de forma bastante simples. É claro que a intenção da série é apenas dar visibilidade a problemática mas, não se trata de uma questão tão séria, pode parecer uma banalização dos ataques de pânico.
O bullying tem um papel central na primeira temporada através de, por exemplo, a homofobia e a gordofobia. Mais tarde também é possível comprovar que esta foi a causa motivadora da deserção escolar do Ivan. E aqui a série tem bastante sucesso, ao tratar a problemática de forma sensível. Antes da personagem representado por Poch conseguir voltar para as aulas, Merlí tem diversas conversas com a turma, preparando eles para o retorno do seu colega e gerando empatia com a situação dele.
Ademais, um dos pontos fortes do roteiro é o debate sobre a educação que ele apresenta, facilmente aplicável ao Brasil ou qualquer país ocidental. Além de dar uma merecida relevância à filosofia, mostra como o colégio pode ser um lugar onde é possível aprender sobre a vida, e não simplesmente adquirir conhecimentos acadêmicos.
Outro fator de debate é como a análise dos filósofos e suas teorias feito por Orella são muito superficiais. Contudo, é realidade que a série consegue despertar o interesse da audiência nessas questões. Docentes e profissionais da filosofia também não observam muita ética nas atitudes do professorado, onde as relações entre colegas/pais e inclusive o sexo entre eles no espaço escolar são moeda recorrente.
Por último, além da pouca representatividade feminina da série, também é objeto de crítica a quase nula diversidade étnica na turma. Os poucos alunos negros e asiáticos estão aí simplesmente como recheio, sem participação alguma na história.
Em conclusão, pode-se afirmar que Merlí é uma série muito recomendável e com muitas características a destacar, como o tratamento de problemáticas sociais de atualidade e dos preconceitos, o questionamento da sociedade e as reflexões sobre filosofia. É uma série indicada se você estiver interessado em refletir sobre a percepção de diversos aspectos da vida cotidiana. Em mais de uma ocasião, pode ser que as aulas de Merlí consigam abrir não só a mente dos alunos, mas também as de quem estiver do outro lado da tela.