Fleabag é uma mulher que se desnuda diante da trama, do expectador e de si mesma.
O nome da personagem (e do seriado) vem de um apelido que a atriz Phoebe Waller-Bridge ganhou na infância. Não à toa, ela assina o roteiro e protagoniza a série que estreou em 2016.
A quebra da quarta parede (quando o protagonista se dirige ao público diretamente) já foi vista em diversas obras audiovisuais – Curtindo a vida adoidado (1986), House of cards (2013), Clube da luta (1999), entre outros – e se caracteriza pela troca de informações que ficarão somente entre o expectador e o protagonista. Em Fleabag, ela é usada com maestria e nos mostra uma das principais características da personagem: sua visão irônica e escrachada da vida.

Uma das principais regras do roteirista é criar personagens conflitantes, e não perfeitos: humanos. Assim, a própria falha da protagonista cria o girar da história. Digamos que Fleabag é uma sátira de si mesma, uma autoanálise falha, pois, ainda que possamos confidenciar seus segredos azedos sobre seus desejos, pensamentos, impressões do outro e do mundo, estamos diante de alguém que não se revela totalmente. Imaginemos que existem diferentes camadas de complexidade: a mais fina, o contato com o real. Ela é uma mulher perdida, distante, lidando com a perda. Uma outra, a que ela nos revela intimamente: a mulher irônica e humana que cede a instintos que a mesma não reconhece. É uma questão complexa se auto estabelecer revelando a camada mais profunda que até mesmo ela ignora, mas vai nos mostrando uma ferida aberta que é incapaz de curar ou, quem sabe, esteja no caminho certo, mas não no tempo da madurez.
Fleabag nos mostra a intimidade do universo feminino de uma forma crua e honesta que nos faz explorar a protagonista de uma forma muito mais humanizada. As suas impressões sobre o sexo ou sobre seu corpo enquanto fala diretamente com a câmera são um reflexo disso, assim como o relacionamento com a família, que mostra um traço infantil da protagonista. Esse último evidencia papéis que costumam cristalizar-se dentro do círculo familiar: a irmã responsável, bem sucedida financeiramente e que discorda das suas escolhas – ainda que exista esse ponto, é visível a admiração entre elas, justamente por carregarem o que a outra reconhece como uma falta; e o pai viúvo, distante, que reconstrói sua vida ao lado de uma mulher cínica de quem ninguém gosta, mas que, de um jeito peculiar, demonstra o amor que tem pelas filhas. A história é de alguém que tenta recuperar-se, que evidencia suas falhas e nos convida para participar dos seus equívocos – por isso mesmo os coadjuvantes parecem tão distorcidos.

São as principais questões que ajudam na compreensão da personagem: Quando a história acontece? Onde está? Quem é? O que aconteceu? Isso constrói todos os ditos alicerces da figura que um roteirista tenta transformar em algo crível. E nisso temos as visões pessoais e interpessoais da narrativa, que servem como combustível para que os conflitos venham à tona. Nada melhor para um conflito do que a figura do outro. Segundo Shonda Rhimes – roteirista e criadora de Grey’s Anatomy (2005-hoje) e Scandal (2012-2018) -, os coadjuvantes precisam trabalhar em conjunto, sendo eles complementares e capazes de atiçar as diferentes facetas do protagonista. Assim funciona o círculo social em que a personagem principal se encontra e que ela transforma o tempo todo em uma caricatura: são pessoas comuns com suas falhas aumentadas, com seus conflitos mais evidentes.
Fleabag nos mostra sua intimidade, suas dúvidas e sua personalidade complexa – quebrando a quarta parede e nossos corações.