A dupla despedida na animação que trouxe vida à carta de despedida de Kobe Bryant, um dos maiores astros da história da NBA.
Em 2015, no ano anterior ao que saiu definitivamente das quadras, Bryant escreveu uma carta de amor ao esporte que mudou a sua vida, chamada Dear Basketball¹. Mesmo antes do seu último jogo, o atleta já planejava criar em cima desse poema, em parte devido à sua grande admiração por animações, o que o fez procurar um veterano da Disney para ajudá-lo no processo.
Apesar do primeiro adeus ser evidente, Glen Keane, responsável por clássicos como A Pequena Sereia (1989) e A Bela e a Fera (1991), também passava por uma transição em sua vida. Depois de 38 anos como animador na Disney, ele tentava construir filmes mais pessoais e expressivos e foi assim que Kobe o conheceu, através de um curta-metragem feito para o YouTube, Duet (2014).
Em entrevista para o The Hollywood Reporter, Keane falou sobre o processo criativo e como ele aprendeu basquete a partir do estudo sobre a técnica do próprio Bryant. Como aprendera com seu mentor, ele buscou não apenas mostrar o que a sua personagem estava fazendo, mas o que ela estava pensando, e o atleta tinha uma memória emocional notável dos highlights de sua carreira².
Os primeiros segundos do resultado desses estudos nos mostram um jogo dos Los Angeles Lakers empatado, no qual Kobe faz a cesta da vitória. É assim que, mesmo antes de começar o poema, o curta já se relaciona com ele, pois a primeira estrofe fala justamente do garoto que enrolava as meias do pai e sonhava com cestas decisivas no Great Western Forum, sede dos Lakers de 1967 a 1999, na qual o time ganhou 6 títulos da NBA, e para quem o ala-armador jogaria por toda a sua carreira, com as camisas 8 e 24.
Um aspecto contínuo na animação de Keane, que se manterá ao longo do short, é a transição orgânica entre o Kobe jovem e sonhador e o astro, elemento decisivo, que era considerado o futuro da NBA até mesmo quando Michael Jordan ainda estava em quadra. Com essa transição, da vitória que acabamos de ver ao quarto de um pequeno fã, podemos ver pôsteres na sua parede: um de Magic Johnson, número 32 dos Lakers, que levou cinco títulos ao clube; e um pôster clássico de Jordan, número 23 do Chicago Bulls, o qual tinha os dizeres “Space: The Final Frontier”.
Enquanto isso, ouvimos: “Um amor tão profundo que eu te dei tudo: vindo da minha mente e corpo, para o meu espírito e alma”. A partir de então, Kobe e Glen nos mostram a dedicação que levou esse menino às quadras, ou, como ele diz, ao seu sonho de poder sair de um túnel (em direção a elas). As fitas de jogos que aparecem são uma referência a como o atleta estudou, profundamente, as movimentações dos seus ídolos, entre eles Jordan, com quem acabou tendo profundas semelhanças. Além disso, vemos os treinos e os jogos de uma criança determinada.
A maneira intrinsecamente pessoal que Bryant usa para se referir ao basquete, em seu poema, torna toda a narrativa muito mais envolvente. A devoção única que ele traz é o que leva essa carta de amor ao ápice, pois ele declara: “Eu fiz tudo por VOCÊ, porque é isso que você faz quando alguém te faz sentir tão vivo quanto você me fez sentir”. Vale ressaltar também que, a todo momento, a trilha sonora de John Williams é mister, conduzindo em tons crescentes até que, ao final, o conjunto traz lágrimas aos olhos.
Depois de chegar ao ápice, mostrando jogadas e emoções ímpares, o curta vai quebrar as nossas expectativas e nos trazer para a realidade. “Mas eu não posso te amar obsessivamente por muito mais tempo”. As próximas sequências mostram a dor e o corpo de Kobe como uma montagem desfeita: de 1996 a 2016 ele cerca de 15 contusões, além de conviver com dores constantes. Apesar de dizer que está pronto para deixá-lo ir, fisicamente, o fim da sua carta mostra como ele jamais deixará de ser o garoto com as meias enroladas, e o curta-metragem nos mostra isso numa linda sequência de jogadas feitas, ao mesmo tempo, pelas duas linhas temporais de Bryant.
Quando a cesta dos dois se concretiza, o suor e o sorriso de satisfação são o foco, parando por um momento uma produção que até então tinha sido eminentemente dinâmica. O ciclo se fecha de forma simbólica, pois mostrar Kobe sair de quadra pela última vez é também mostrá-lo fazendo o caminho reverso com o qual ele tanto sonhou: voltando pelo túnel que lhe dera a glória.
É claro que tanto o curta quanto o poema focam na emotividade e na jornada dele dentro do esporte enquanto uma paixão, sem mostrar efetivamente algumas das confusões que o astro já arranjou dentro e fora de quadra, o que incluiu algumas brigas e até mesmo uma acusação de assédio sexual, a qual ele negou. Entretanto, precisamos lembrar que essa nunca foi a sua proposta e que, enquanto autor dessa obra quase biográfica, Kobe Bryant escolheu focar na sua relação estreita com o basquete.
Ao fim, Dear Basketball deixa um gosto salgado – sabe como é – e nos remete a muito mais do que essa carreira singular, transmitindo uma devoção que podemos imaginar ser de todo atleta e um desapego cheio de gratidão e saudade. Levou, então, a merecida estatueta de “Melhor Curta-Metragem de Animação” no Oscar 2018.