Short Films | O Dia em que Dorival Encarou a Guarda

O cineasta Jorge Furtado mostra, em um dos curtas-metragens mais relevantes da sua carreira, que além de conseguir possibilidades de ter uma carreira rica, versátil e que passeia por estilos diferentes e variados, existem possibilidades de trazer à tona temas politizados e socialmente relevantes nesse espaço, que pode ser limitado de tempo, mas não artisticamente.

Como diretor e roteirista da produção que falaremos hoje, ele já mostra todas essas virtudes. Jorge Furtado deve ser um dos nomes mais interessantes e curiosos do cinema brasileiro. Cineasta, roteirista e diretor e um dos fundadores da Casa de Cinema de Porto Alegre (produtora de cinema gaúcha), ele separa a sua carreira em várias camadas: dirige filmes despretensiosos, acessíveis, ricos, autorais e cheios de méritos – mais do que muito bem feitos, eles conseguem se utilizar do melhor da linguagem popular brasileira (com destaque pra filmaços como O Homem Que Copiava, de 2003, e Saneamento Básico, o Filme, de 2007).

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Furtado é um roteirista de TV extremamente prolífico, até hoje trabalhando para a maior emissora do Brasil – com destaque para as minisséries que são suas obras-primas na televisão como A Comédia da Vida Privada (1995-1997), Agosto (1993) e Memorial de Maria Moura (1994) -, além de ter escrito filmes que não dirigiu e dirigido muitos curtas-metragens extremamente criativos e interessantes, como, por exemplo, a sua obra–prima Ilha das Flores, de 1989.

Sua obra é marcada por um bom humor característico, sempre indo do drama à comédia e da comédia ao drama, com bons diálogos e uma preocupação muito grande com a linguagem. Há uma busca por versatilidade de gêneros e estilos, e ainda metalinguagem, estudos de personagens, juventude, referências cinematográficas, claro, mas também literárias, teatrais e até jornalísticas. Ele sabe, até devido às suas funções televisivas, somar tudo isso muito bem nos seus melhores trabalhos. Existe, ainda, uma personalidade muito politizada na obra de Jorge Furtado, que claramente vem dele. Essa característica está bem marcada em um dos seus curtas-metragens muito interessantes, que o próprio dirigiu e roteirizou: O Dia em que Dorival Encarou a Guarda (1986).

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Dirigido em parceria com José Pedro Goulart e roteirizado ao lado de Giba Assis Brasil (também montador), Ana Luiza Azevedo (que também faz assistência de direção) e José Pedro, com argumento de Tabajara Ruas em um livro dela, O Dia Em Que Dorival Encarou O Guarda marca uma constante na filmografia de Furtado: o protagonismo negro. Mesmo o próprio sendo branco, parece existir uma preocupação pessoal em colocar personagens negras bem representadas e com relevância nas suas obras.

Os protagonistas de dois dos seus cinco longas (O Homem Que Copiava e Meu Tio Matou um Cara, de 2004) são negros em dois retratos bastantes realistas, bem feitos e que fogem de esteriótipos do negro, geralmente usados. Lázaro Ramos é uma figura constante e importante na sua filmografia, aparecendo não apenas nesses filmes citados, mas também em Saneamento Básico, o FilmeCena Aberta, de 2003; Decamerão: A Comédia do Sexo, de 2009; e a recente Mister Brau, no ar de 2015 a 2018, que ele criou e roteirizou ao lado de Adriana Falcão.

Nessa mesma linha, Jorge escreveu o episódio “Meia Encarnada Dura de Sangue”, da série Brava Gente (2000-2003), que expõe o racismo no Sul do Brasil, participou de roteiros da série Antônia (2006-2007) – toda protagonizada por atrizes negras, com um elenco negro e ambientada na periferia – e discute a questão na sua recente série Nada Será Como Antes, de 2016, que ele realizou com os seus parceiros de muitos trabalhos Guel Arraes e João Falcão. Dessa vez, em O Dia em que Dorival Encarou a Guarda, o protagonista é Dorival, interpretado por João Acaiabe.

Preso em sua cela numa prisão militar, Dorival quer tomar um banho; para conseguir isso, ele desafia os militares no comando da prisão. Com uma premissa simples, Jorge Furtado e a sua equipe criam uma pequena obra–prima. Feito logo após da abertura do regime civil-militar, o curta é uma crítica clara ao período ditatorial, mas não se resume sem ser só isso. Ele faz uma alegoria, na qual se discute a ignorância de seguir ordens sem as questionar e a barbárie a que isso pode levar, além de criar paralelos com temas que ainda se mostram atuais, como o racismo institucionalizado e a militarização da polícia.

O filme usa de simbolismos para inserir críticas políticas durante todo o tempo: Dorival aparece em uma cena bela e poética, finalmente conseguindo o seu banho após desafiar os militares… e ser espancado. Isso reflete a tortura das vítimas e os assassinatos que aconteceram na ditadura civil-militar.

O filme faz questão de trazer alguns elementos da cultura americana, que passam pela cabeça dos militares, expostos visualmente em forma de clipe: a associação que um deles faz de Dorival com o King Kong, a leitura de uma revista em quadrinhos de faroeste e um soldado assistindo ao filme Casablanca (1942), de Michael Curtiz. Com isso, o filme faz uma simbologia da influência do governo americano na ditadura militar, que aconteceu sob os auspícios da Escola Superior de Guerra, construída com moldes estadunidenses.

O King Kong e o comportamento dos guardas em relação a Dorival também servem para expor a mentalidade racista deles, diminuindo-o e tratando-o como um animal. Dorival chega mesmo a assumir essa postura para confrontar os guardas, já querendo provar o seu ponto e ter o seu objetivo alcançado. Aqui, há um viés inteligente nessa denúncia da forma que Dorival é tratado, pois a hipersexualização dos corpos de negros e negras fica visível pela forma que ele é encarado, de forma que o filme consegue trazer à tona esse ponto de vista.

O comportamento racista está enraizado na política militar, como o curta bem mostra. O racismo é tão naturalizado no comportamento dos guardas com Dorival que impressiona a forma que eles se referem e falam com ele. O único militar negro tem que se adequar àquele ambiente racista e acaba, mesmo que de forma não maliciosa, reproduzindo e introjetando dentro de si aquele comportamento, com o qual ele mesmo entra em contato quando um subordinado seu pede desculpas por chamar Dorival de “criolo” de uma forma racista na sua frente. Ao final do filme, o militar negro parece ter percebido essa condição no ambiente em que ele está e sente empatia ou alguma conexão com Dorival, como demonstra o plano final do filme.

A principal crítica da produção está nesses males enraizados nas instituições, como herança da ditadura civil-militar: a militarização e a estrutura hierárquica atrapalham o funcionamento dela própria. Não existe diálogo, ordens não são questionadas, são seguidas cegamente e as únicas respostas são o silencio e a violência. Jorge Furtado e sua equipe são hábeis em trazer à tona a violência do Estado e o racismo que está nele enraizado, através desse conto humano que conta com a interpretação visceral e excelente de João Acaiabe.

O Dia Em Que Dorival Encarou O Guarda mostra que o curta-metragem, assim como o cinema, pode ser um espaço em que temas políticos e sociais estão a favor da arte e a favor da discussão e reflexão que a ela pode gerar. Arte é um ato político, como tudo é um ato ou uma manifestação política – até viver – e nesse curta Furtado consegue retratar isso com perfeição, com uma obra tão crítica quanto forte e poderosa.

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