Alguns filmes estabelecem muito bem o seu tom desde o princípio.
Trama Fantasma, escrito e dirigido por Paul Thomas Anderson, é um filme de andamento lento, detalhista e simbólico. Essas características se somam a outras constantes no trabalho de Anderson e constroem uma narrativa cuja problemática é levemente perturbadora, principalmente com o seu desfecho.
Daniel Day-Lewis vive Reynolds Woodcock, um importante estilista da Inglaterra, lida com a sua vida através de todo tipo de padrões: rotina, alimentação, relacionamentos. Durante toda essa construção, a música assinada por Johny Greenwood se mostra essencial. Vemos, por exemplo, na introdução da personagem os sons que definem o seu dia a dia: o creme de barbear passando pelo rosto, a tesoura aparando os pelos faciais, a meia sendo colocada, os sapatos sendo polidos; todos esses sons preenchem a tela com mais informações do que ele jamais poderia ter dito sobre si mesmo.
Woodcock é, assim, um homem extremamente excêntrico, e a próxima pincelada que temos disso é durante o café da manhã, quando a atual musa dele tenta a todo custo chamar a sua atenção. Ao fim da cena, temos a declaração dele: eu simplesmente não tenho tempo para começar uma manhã com uma confrontação. Logo, o som leva à interação, que leva ao tom da personagem e, por fim, do filme. A soma das reações de Day-Lewis ao ambiente em que se encontra é o que constrói o filme e dá o tom de como ele deve ser lido pelo espectador.
Essas cenas de café-da-manhã ficaram famosas, em particular por representar quase uma guerra “silenciosa”, e são levadas a outro patamar com a entrada de Alma (Vicky Krieps) em sua vida. O confronto que ela trará não é tão silencioso assim, claro, porque os pequenos sons de se servir, mastigar, passar algo; todos eles são comuns e insignificantes para nós, mas se tornam um furacão nos ouvidos de Woodcock. A importância desses momentos para a construção do relacionamento dos dois é tão grande que o The New Yorker classificou a produção como um “filme sobre comida” sob as lentes de Helen Rosner¹.
Num filme com tão poucos diálogos, as interações se baseiam no que a gente pode ver, perceber e, mais do que tudo, ouvir. Paul Thomas Anderson guarda as suas cartas para interações que serão significativas, no sentido de acrescentar sentidos; assim, os detalhes narrativos precisam se sustentar sem as palavras, já que elas são tão preciosas aqui. O preciosismo é fato na trama, no trabalho de Woodcock e no encaixe da música e dos sons, que ambientam todo o trabalho do diretor.
No ápice das trocas entre os dois, a cena em que Alma admite o estar envenenando, os sons do preparo da refeição são como o prelúdio do estouro da bomba que vai trazer um fim eminente. A pirraça e o confronto: uma água sendo lentamente servida, de forma descuidadosa e propositalmente exagerada. Ela sabe o quanto isso o irrita, mas também sabe que será tudo que ele tem em breve. É esse tipo de mensagem que um filme inteiro de sons consegue te passar.
Prestar atenção ao som em Trama Fantasma faz parte da experiência total trazida por Paul Thomas Anderson. Para quem não se atentou à riqueza de detalhes, o filme pode ter sido – e provavelmente foi – maçante, mas para quem se deixou instigar por ele sentiu as provocações de cada take.