O curta neozelandês indicado ao Oscar de melhor curta-metragem, do diretor Taika Waititi, não é apenas um excelente começo de carreira para ele e um primeiro passo no seu estilo particular, como também é um perfeito exemplo do uso do minimalismo em curtas-metragens, na forma de se lidar com espaços.
Olhar curtas–metragens do começo das carreiras de cineastas já estabelecidos sempre acaba sendo um experimento interessante e fascinante. Isso acontece porque você acaba observando o processo de um artista, que geralmente vai apresentando temas, conceitos, ideias e técnicas que ele aperfeiçoa com o passar da sua carreira. O curta–metragem também já é algo fascinante por si só, porque, pela sua pouca duração, leva o cineasta a ser conciso no que ele quer apresentar, além de fazer com que ele esteja aberto para a experimentação e, geralmente, lidar com o minimalismo.
Se tem uma obra que se destaca aos olhos quando pensamos em como um curta usa o minimalismo e como ele já apresenta um repertório que se seguiria na carreira do seu diretor, ele é Two Cars, One Night (2004) do diretor Taika Waititi, responsável pelo recente Thor: Ragnarok (2017).
Antes de se tornar um dos diretores mais interessantes da atualidade e um dos melhores realizadores de comédia dos tempos de hoje, que, de uma carreira de filmes pequenos, adentrou o mainstream, o neozelandês Taika Waititi, um jovem estudante de Artes Cênicas, dirigia e escrevia curtas–metragens para serem lançados em festivais de cinema da Nova Zelândia. Um desses curtas foi Two Cars, One Night, que acabou fazendo uma carreira internacional e o levando a uma indicação ao Oscar nessa categoria.
Na sua carreira em ascensão, sempre marcada pelo seu humor particular, temas como a infância e jovens protagonistas aparecem em obras–primas como Boy (2010) e Hunt for the Wilderpeople (2016). Esse tema é apresentado em Two Cars, One Night, no qual dois irmãos, Romeo (Rangi Ngamoki) e Ed (Te Ahiwaru Ngamoki-Richards) estão de fora de um estabelecimento esperando os seus pais em um carro. Romeo, então, conhece uma garota chamada Polly (Hutini Waikato), que espera seu pai em um carro ao lado deles. Ao decorrer da trama, o relacionamento de Romeo e Polly evolui de uma antipatia e uma provocação para uma amizade e uma conexão humana com camadas de flertes e até de um “primeiro amor”, nesse curta que mescla comédia, romance e drama de uma forma bem pouco usual, como é típico no cinema do Taika.
Ambientado do lado de fora do estabelecimento, Taika – que está nesse filme tanto como diretor quanto como roteirista – dá uma noção plena e exata de como não soar maçante e pobre mesmo que o curta seja inteiro em uma só locação. Ele foca em ir desenvolvendo o relacionamento dos protagonistas masculinos e femininos de maneira muito acertada e lenta. De um jeito fluido, o relacionamento dos dois vai mudando e se transformando com o passar do filme, até que no final vejamos de forma doce a conexão humana que se construiu entre essas duas personagens, que acaba sendo o ponto inteiro do filme.
Taika faz isso usando outra característica da sua carreira, presente nesses filmes: os diálogos. Os que ele cria, como quaisquer bom diálogos, estão lá para desenvolver a relação dos jovens e apresentar a dinâmica entre eles e como ela se constrói; porém, Taika, como um bom roteirista, consegue adicionar mais camadas a isso e é muito inteligente em deixar saírem improvisos que agregam a sua narrativa.
Os diálogos do roteirista são marcados por um senso de humor muito estranho, extremo e ao mesmo tempo infantil e até inocente. O seu humor particular trabalha com situações inusitadas que, no primeiro instante, parecem tristes ou tensas, mas que acabam rendendo risadas pelo seu olhar intencionalmente ridículo e verdadeiramente engraçado, que encara tudo com algum humor. E isso é fascinante, pois suas personagens trocam frases, insultos, xingamentos, provocações curiosas… indo dos mais estranhos diálogos, brincadeiras e referências variadas da cultura pop, feitas de forma orgânica, chegando até a referenciar um certo ator famoso. Tudo isso, em suma, ajuda a construir o senso de intimidade crescente entre as personagens.
Tudo nos seus filmes é muito fora do comum no sentido da estranheza; mas não soa forçado, porque, como toda boa comédia, existe uma humanidade no seu subtexto e é tudo muito palpável. Ele fala de pessoas tão reais quanto exageradas e, assim, a verossimilhança na caricatura que ele cria é muito forte. Quando o curta acaba, entendemos que o humor que ele desenvolveu faz parte das dinâmicas de relacionamento humanas e testemunhamos o que o curta fez o tempo todo: construiu uma relação entre duas crianças, no – possivelmente – primeiro contato delas com gêneros diferentes, e ainda deixando alguma esperança para o futuro de ambas.
No seu desfecho, é doce e triste como Taika constrói a despedida e podemos ter total noção de como o diretor conseguiu criar um retrato comovente e belo do primeiro contato de dois jovens, passando da solidão a uma conexão humana, e tudo isso construído sem deixar o seu humor típico. Como demonstrou com o passar da sua carreira, Taika é um certeiro diretor de atores infantis e, na sua estreia, o resultando não é diferente, arrancando duas interpretações precisas dos atores mirins principais.
Além do roteiro, visualmente o diretor também acerta em cheio. Primeiro, a fotografia em preto e branco de Adam Clark, seu parceiro no filme Boy, cria uma sensação sombria de solidão e de isolamento, que nos coloca na pele daqueles personagens num espaço tão tenso e até deprimente e – porque não – assustador para aquelas crianças. O curta, inclusive, acerta em subverter totalmente a linguagem narrativa de que um romance ou um filme infantil se utiliza: os seus protagonistas infantis estão em um lugar sombrio para a sua idade; em uma cena, é a menina que entrega para o menino um anel, subvertendo papéis de gênero; e eles, como já foi dito, são retratos bem mais realistas do que é costumeiro quando se trata de personagens infantis, mas com uma doçura natural de qualquer criança.
Vale ressaltar que a presença feminina é tratada de um jeito muito inteligente, fora dos clichês e em igualdade com a sagacidade do protagonista masculino. Talvez até mais, já que ele se encaixa no padrão de muitas personagens do cinema de Waititi: aquele que “se acha mais do que é” e que tenta expor uma imagem do que ele idealiza diferente do que ele é na verdade.
Além da fotografia, Taika visualmente é bastante criativo, com montagens rápidas muito interessantes por meio de efeitos visuais para indicar a passagem de tempo. Os planos entre os dois carros e entre os dois protagonistas também são muito precisos, indicando um descobrimento de duas realidades diferentes que entram em contato; mesmo que elas estejam separadas, nem a distância as impede de se comunicar.
Ademais, o filme também acompanha a dinâmica da narrativa de forma muito ágil e sempre visual, usando planos fechados das duas personagens, takes longos para dar a ideia de tempo real que o filme exige, closes em ambos, Primeiríssimos Planos e Plano Gerais para ilustrar o vazio daquele espaço. Há ainda um Plano Geral Aberto, que fecha o filme, mostrando o sentimento de solidão repentina da personagem masculina central, tão pequena naquele espaço tão grande e vazio; mas também um sentimento de saudade, de curiosidade e de encantamento por ter conhecido o “novo” nessa sua progressão de relacionamento que o fascina.
Quase sem trilha sonora, o filme também é inteligente em usar músicas nos dois únicos momentos nos quais ela acaba se tornando uma figura marcante, principalmente ao tocar no final.
Além de mostrar traços muito interessantes e já promissores que iriam se perpetuar na sua fascinante carreira, Taika Waititi também mostra como um tempo e um espaço limitado não te impedem de criar uma narrativa rica mesmo em um ambiente minimalista, seja narrativamente ou visualmente. Esse é o grande mérito de Two Car, One Night.