Crítica | Sharp Objects

A minissérie da HBO deixou sua audiência no chão, tremendo e completamente desacreditada.

Quando a jornalista Camille (Amy Adams) é designada para cobrir o desaparecimento de duas meninas na sua cidade natal, a pequena Wind Gap, é possível prever uma narrativa de mistério e constante mudança de suspeitos, como manda o livrinho. Entretanto, o que Sharp Objects entrega é algo completamente inesperado.

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[ALERTA DE SPOILERS]

Mesmo depois de dois corpos encontrados, as investigações comandadas pelo xerife Bill Vickery (Matt Craven) e pelo detetive da cidade grande, Richard Willis (Chris Messina), não andam tão bem. Essa é, no conjunto, uma característica da produção: nada é apressado; o passo é lento, quase suspenso. Não existe uma preocupação latente em encontrar o assassino, resolução que só virá nos últimos segundos. Mesmo assim, isso não significa que o andamento é entediante, porque a atmosfera de Wind Gap é praticamente outra personagem, ainda mais a partir da exposição de suas excêntricas entranhas e da sua população nitidamente perturbada.

O impasse investigativo se dissolve, perdendo importância narrativa à medida em que o real objetivo da série é desenvolvido: a exploração das personalidades femininas, seus relacionamentos, suas angústias, seus dilemas, sua ira e sua toxicidade. As três mulheres em cena passam esses desígnios muito bem: Amy Adams, Patricia Clarkson (Adora) e Eliza Scanlen (Amma). E vão muito além disso: Sharp Objects demonstra como elas são capazes de exercer influência uma sobre as outras, sem medo de tocar no que tem de cruelmente errado com a família americana.

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As implicações da relação com uma mãe que possui síndrome de Münchausen por Procuração parecem nunca deixar de nos perseguir. Adora busca tanto o papel de cuidadora e de boa mãe, que suas filhas precisam estar constantemente doentes. E se elas não estão, ela dá um jeito nisso. Essa é uma grande revelação para a série e, apesar de não se apoiar nos enormes plot twists do seu enredo, a série faz com que eles funcionem muito bem.

Patricia Clarkson é, em absoluto, um elemento chave e base da produção. Não só pela importância das consequências do seu comportamento, mas também pela incessante provocação que ela consegue alcançar frente ao espectador, cujo instinto imediato é proteger Camille de qualquer dano – ambição que jamais será cumprida.

As discussões estarão abertas por um bom tempo, mas, como dito no próprio livro, uma garota criada com veneno achará que a dor é reconfortante, de onde podemos tirar a origem da relação que Amma tem com a violência. Diferentemente da violência autoinfligida de Camille, gerada pela rejeição, ela assume um comportamento de controle obsessivo maquiado de inocência e doçura. Eliza Scanlen é uma grande revelação do elenco, pela forma manipulativa através da qual ela desvia os olhares de todos de si, inclusive do espectador, mesmo que esteja exibindo a todo momento indícios da sua natureza.

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Jean-Marc Vallée transbordou a tela mais uma vez, depois de Big Little Lies, com a sua direção e montagem. Os indícios do íntimo de Camille estão em cena até os últimos detalhes, marcados nas inúmeras palavras espalhadas através da construção visual, mas também a partir dos fragmentos de cena que intercalam os momentos de escalada emocional para construir uma memória dentro da trama. A dinâmica permite que o espectador compreenda e simpatize em níveis muito mais profundos com a personagem principal.

Os fragmentos são elusivos ao ponto de serem quase impossíveis de se ater; e são pessoais, aos moldes do que a própria introspecção tende a ser, como ressaltou a crítica da Variety*. A preocupação não está somente com a mensagem passada ao público, mas também com a relação que Camille guarda com cada pedaço dos seus traumas de infância, desde a rejeição da mãe, a morte da sua irmã, até o estupro.

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Sophia Lillis na versão mais nova de Camille

Todos esses gatilhos estão espalhados pelo roteiro, que teve contribuição da própria Gillian Flynn, escritora do romance que deu origem à série, mas nada disso teria funcionado sem a maestria de Adams. Ela segura uma tensão, uma ansiedade e um autocontrole de fazer prender a respiração, o que não impede que sua liberação seja igualmente intensa.

Não há discussões acerca da capacidade que ela teve de se relacionar com a imensa dor em que sua personagem vive, ou, como Adams disse em entrevista para a CBS, a dor que ela “usa” – se referindo ao seu corpo coberto de cicatrizes. Durante a mesma entrevista, a atriz diz ter se sentido um pouco “louca” quando as filmagens terminaram, ao sentir a dificuldade de se desligar das intensas emoções de Camille.

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O oitavo e último episódio, Milk, é uma explosão. O acúmulo de desespero é tal que, devo admitir, em certo ponto não houve outra maneira de lidar com ele do que chorar compulsivamente. Ele não te deixa respirar – e, quando deixa, é só para te nocautear de novo. Aqui, vemos as ligações de muitas das peças postas em jogo, mas não de todas.

Veja bem, algumas escolhas narrativas foram feitas para a adaptação, e por bons motivos. Certos arranjos não funcionam com a mesma naturalidade fora da estrutura literária, então toda a trama pós-descoberta final foi deixada de lado. Não era necessário se alongar em explicações detalhadas do “depois”, como foi feito em Oito Mulheres e um Segredo, por exemplo. Não obstante, se essa era a intenção, pormenores existentes no livro não precisavam ser abordados; do jeito que foi feito, muitas pontas ficaram soltas, quase te obrigando a ler o romance.

Observar a garotinha sentada na janela da casa de boneca e o chão especial montado com dentes, contudo, fez as oito horas valerem a pena.

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O rosto de Amy Adams foi o que mais apareceu aqui. E apareceria outras 30 vezes, se 30 vezes mais fosse necessário falar sobre a série, pois ela te leva por um caminho tortuoso da forma mais humana possível.

E os caminhos tortuosos de Sharp Objects são muitos. A HBO acertou mais uma vez em apoiar que uma história nova, no sentido de que possui uma perspectiva pouco abordada pela grande mídia, tivesse espaço. A dor, as contradições da sociedade, a gravidade do silêncio frente ao abuso. Temas de relevância, tratados com a relevância que merecem.

Por fim, vale comentar a brutal cena posta no meio dos créditos, muito controversa em sua frieza. São segundos perturbadores que põem fim definitivo à história. Estou bem a essa distância de Amma, obrigada.

Abaixo, a entrevista mencionada com a atriz Amy Adams e a escritora Gillian Flynn:

*a crítica pode ser lida em https://variety.com/2018/tv/columns/sharp-objects-finale-review-why-show-matters-1202917340/

2 comentários em “Crítica | Sharp Objects

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